O Combate do Passo do Catarino

Vindos da Serra do Caverá, Honório Lemes e sua tropa chegam ao Passo do Catarino na sombria manhã do dia 29/09/1923, no intento de ultrapassar o Rio Ibicuí a atingir a região das Missões. O rio estava cheio e saía do leito, tapando matos, campos e lavouras.

Para a travessia foi usada uma barcaça rebocada por um bote movido a gasolina que estava amarrada no local, tendo esta capacidade para cem homens e alguns cavalos.

A retaguarda da coluna foi protegida pelo Coronel Mingote Cunha, que ficou encarregado de deter o ataque dos homens de Flores da Cunha. Somente após a travessia do último homem lançou-se ele à margem oposta, inutilizando a embarcação após isso.

No mesmo dia da travessia, um dos batalhões da Brigada Militar havia chegado à estação do Jacaquá embarcado num trem. Nessa ocasião vários sargentos e praças sabendo da presença do inimigo lançaram-se contra eles com desassombro, sendo rechaçados pela linha de defesa do Coronel Mingote Cunha, aonde muitos brigadianos perderam a vida. No lado da coluna de Honório Lemos as perdas foram mínimas.

O traslado da coluna de Honório Lemes durou dois dias e uma noite. Flores da Cunha escreveu mais tarde no seu Livro “A Campanha de 23” que se o batalhão tivesse atacado coeso logo ao desembarcar, não só desbarataria por completo o inimigo, como também teria terminado com a coluna mais eficiente e combativa da revolução, pois a situação em que se encontravam, ao forçar a passagem, era crítica em relação a defesa.

Trecho extraído do livro “José Antônio Flores da Cunha – discursos (1909-1930)”, do trabalho “Projeto Memória do Parlamento – Parlamentares Gaúchos”, realizado pela Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, que fala sobre a atividade política do republicano José Antônio Flores da Cunha. O trecho “in verbis” fala sobre o Combate do Passo do Catarino.

XV – Em Perseguição

Depois do combate ferido nos arredores de Quaraí e que terminou entre o Passo de Quaraí-Mirim e o Cerro Jaraó, a Brigada de Oeste permaneceu dois ou três dias acampada no Passo de Cerrito, margem esquerda do Ibirapuitã, no Município de Livramento.

A coluna retomou a marcha desfalcada da única unidade efetiva da Brigada Militar com que contava o valoroso e fogueado 2º R.C., que ficou guarnecendo Livramento. Levei, porém, em substituição dele, um dos seus esquadrões, comandado pelo Capitão Mirandolino Machado, do 6º Corpo Provisório, ali organizado, sob o comando do Tenente-Coronel Acácio de Carvalho.

A perseguição aos revolucionários de Honório Lemes prosseguiu pelo Caverá adentro. Após várias marchas e já em pleno coração daquela serra, certa manhã, indo eu, sozinho, separado cerca de quinhentos metros da testa da coluna, divisei um indivíduo montado que, surpreendido, e indeciso pelo meu aparecimento e o da força, surgidos ambos da mataria que orla a saída de uma picada, se deixou prender sem oferecer resistência. Estava armado de Mauser, revólver, espada e faca. Vi logo que era revolucionário, não só pelo nervosismo que demonstrava, como também porque, apesar de não ostentar a divisa encarnada, as cores da mesma, desbotadas pela ação das chuvas, lhe ficaram marcadas no chapéu. Achando-me só, arrebatei-lhe das mãos, sem mais tardança, a Mauser, não tendo, para isso, necessidade de arrancar das minhas armas ou fazer-lhe qualquer ameaça. A cautela fora adequada, pois o prisioneiro, como no ato verifiquei, trazia a arma carregada com seis cartuchos, sendo que um já estava no cano. Era, segundo declarou, o tenente revolucionário Couto, cujo pai, também oficial, fora morto no combate de Ponche Verde, dias antes, conforme declaração que trazia escrita num pedaço de papel. Quando efetuei a sua prisão notei, cerro acima, outro indivíduo, também montado, a potrear cavalos, e que, ao se ver percebido, abandonou os animais que ia arreando e embrenhou-se numa grota profunda e boscosa. Fiz sair em sua perseguição vários cavalarianos, que já o julgavam escapado quando foram advertidos, pelos gritos dos jacus, que o homem ainda estava na grota. Entregou-se também. Era um camponês de nome Paiva, morador de Quaraí, e que, por sinal, tinha os pés virados para dentro, em deformação congênita. Nas minhas forças servia um seu irmão, inspetor de quarteirão naquele município, a quem foi o prisioneiro entregue. O outro, o Tenente Couto, já fora mandado apresentar, preso, ao 5º Corpo Provisório. Do interrogatório a que foram submetidos, não me foi possível colher informes sobre as prováveis intenções do inimigo, nem mesmo do rumo por ele tomado. Mas, já no segundo dia de marcha, começaram a chegar notícias da direção seguida pelos revolucionários, isto é, que Honório Lemes, atravessando o Ibicuí, no Passo do Catarino, penetrara na região missioneira.

Deliberei, então, em marcha forçada, avançar nessa mencionada direção. Antes, porém, de o fazer, mandei um piquete adiantar-se ao grosso da coluna e chegar a Jacaquá (estação da Viação Férrea, no ramal de Cacequi a Uruguaiana), para o fim de colher melhores e mais seguras informações e de, ao mesmo tempo, sendo possível, estabelecer ligação com o Governo do Estado, em Porto Alegre.

Nesse dia, deixei a coluna bivaqueando, mais ou menos, nas nascentes do Jacaquá e, seguindo pela sua margem esquerda, dirigi-me, com pequena escolta, para aquela estação. Como procurasse chegar o mais apressadamente possível, tive de recorrer aos atalhos e caminhos vicinais, abandonando, por tal forma, a estrada pública, que dava muitas voltas e alongava de léguas o percurso a fazer. Desse modo, chegava eu ao ponto de destino bem antes do piquete que, pela manhã, partira da coluna com a missão que lhe determinara. Ao defrontar a linha férrea, verifiquei desde logo e a olho nu, mesmo à distância em que me encontrava, que na estação de Jacaquá se achava um grande comboio, provavelmente militar, pois vi, claramente, caminhões sobre plataformas, trens de cozinha e outros materiais e equipamentos. Só poderia tratar-se, no caso, de força governamental e, portanto, amiga.

Convencido disso, fui avançando no rumo visado, por dentro dos campos da sucessão Dornelles, até chegar a um boqueirão em frente da estação.

Aí, com surpresa, encontrei-me com uns vinte ou trinta homens, estendidos em linha de atiradores. Mandaram-me fazer alto, ordem a que não obedeci, pois eles já deviam haver percebido que, eu e minha pequeníssima escolta, éramos das forças legais, não só pela curta distância em que estávamos uns dos outros como também, pelo azulão dos nossos fardamentos, facilmente reconhecível.

Foi um primeiro e o mínimo incidente que não deixou de agastar-me, porém que nada significou comparado com as decepções, contrariedades e amarguras do resto daquele dia. Tive, logo após a chegada, a impressão penosa do que, ali e em São Francisco de Assis, ocorrera!

A força revolucionária de Honório Lemes forçara a passagem do Ibicuí e só fora fracamente hostilizada, quando deveria ter sido esmagada ou, pelo menos, impedida de realizar a travessia. Estava o rio muito crescido e o nado por aquele tempo primaveril poderia ser calculado em mais de seiscentos metros. Havia, apenas, uma balsa para o transporte de gente e de animais, rebocada por um bote movido à gasolina.

Um dos batalhões da Brigada Militar, embarcado em trem, chegara a Jacaquá quando ainda a maior parte dos revolucionários não conseguira passar.

Há, da estação ao Passo do Catarino, mais ou menos uns mil metros. Pois bem, se o batalhão tivesse atacado logo ao desembarcar haveria não só desbaratado, por completo, o inimigo, como também, e principalmente, te-lo-ia impedido de realizar a operação de travessia do rio, façanha que praticou em condições quase normais e com o mínimo de perdas.

Entretanto, sabe-se que a briosa unidade estadual mordia o freio no afã de atacar! Mas, ou fosse pelo temor da responsabilidade ou fosse lá por outros recônditos motivos, o fato é que o governo perdeu uma boa ocasião de terminar com a coluna mais combativa e eficiente da revolução.

Houve, ainda, a lamentar a morte gloriosa de vários sargentos e praças que, ao chegar o trem à estação e verificada a presença do inimigo, se lançaram contra ele com desassombro, sem que, para isso, tivessem recebido ordem!

XVI – Passagem do Ibicuí

Colhidas, de relance, as informações necessárias, procurei dirigir-me ao Passo do Catarino. Pedi ao comandante do batalhão que me fornecesse um caminhão dos que trazia, para transportar-me. Respondeu-me que o faria se fosse indenizado da gasolina, mas… afinal, levou-me até o passo!…

Ali chegado, renovei a solicitação, antes feita ao Coronel Amadeu Massot, de que tentasse a travessia do rio, a nado ou em canoa, para o fim de, primeiro, conseguir mais informes do inimigo e, segundo, trazer do outro para o nosso lado a balsa e a gasolina, já utilizadas pelos revolucionários.

De início, não fui atendido porque, responderam, o inimigo ainda estava do outro lado do rio e ocupava as suas barranqueiras!

Desapontado com a resposta, insisti, roguei e, afinal, vi satisfeita a minha sugestão: o Tenente Witt, de saudosa memória, atravessando o rio numa velhíssima canoa, trouxe o reboque, da margem oposta, a balsa e a gasolina. Ambas haviam sofrido depredações e estavam imprestáveis.

Do inimigo não havia outras notícias além das que já eram do conhecimento de todos: tinha ele, dias antes, atacado de surpresa e batido a pequena e heróica guarnição de São Francisco de Assis, feito em que o excesso de pundonor sacrificou vidas preciosas.

No correr da tarde, começaram a chegar as minhas forças. Tomei, desde logo, a iniciativa de fazê-las passar para o outro lado do rio, aproveitando canoas e atirando a nado a cavalhada.

Desse modo, consegui atravessassem o rio para mais de trezentos homens e elevado número de cavalos.

Esses contingentes, de tropas provisórias, formaram a vanguarda. Comandavam-nos Nepomuceno Saraiva e Pequeno Pedroso, tendo como adjunto e meu observador o Major Tauro Diogo Hamilton.

Determinei não se detivessem em São Francisco de Assis e, nessa mesma tarde, tomassem o rumo de Santiago do Boqueirão, com a recomendação reiterada de, constantemente, me informarem o que lhes fosse possível ir descobrindo e sabendo da conduta, marcha e planos dos adversários.

Conservei-me no Passo do Catarino, entregue à azáfama de preparar meios adequados para a passagem, no dia seguinte, do grosso da minha força quando, já quase ao escurecer, ali chegava, de caminhão, um oficial da Brigada Militar (se não me engano, o bravo Capitão Cristalino Fagundes, morto um ano depois em combate com as forças do General Miguel Costa, no Paranapanema) que vinha para levar-me à estação de Jacaquá, onde, pelo telégrafo da Viação Férrea, o Presidente do Estado desejava comigo conferenciar.

Chegado ali, fiz, de imediato, anunciar ao Dr. Borges de Medeiros que estava a sua disposição.

Conservei, por longos anos, com outros papéis, todos relativos à campanha de 1923, a fita telegráfica Morse da conferência realizada. Infelizmente, no incêndio criminoso de minha casa, em Uruguaiana, e que a devorou por completo, perderam-se todos esses documentos. Guardo, porém, de memória, o teor da entrevista telegráfica. De começo, o Presidente apresentava-me saudações e perguntava se eu tinha algum plano a propor. Agradeci-lhe os cumprimentos e, em resposta, uma vez que ele sabia das ocorrências, disse-lhe não haver outro plano senão ordenar a minha coluna transpusesse o Ibicuí e buscasse o inimigo para batê-lo. Acrescentei que me via em dificuldade para atravessar o rio, por terem os revolucionários destruído a balsa e a gasolina utilizadas naquele passo. Respondeu-me que aprovava o plano e prometeu providenciar para que, de Alegrete ou de Uruguaiana, me fossem remetidas peças necessárias, ao conserto e bom funcionamento daquelas embarcações, e despediu-se cordialmente. Como é de ver, a conferência fora de considerar como terminada aí. Não foi, porém, porque quis prossegui-la diante da ingenuidade da afirmação de ter de esperar, quem sabe lá quanto tempo, pela chegada das peças de reposição para as embarcações avariadas. Repliquei-lhe, então, que, realmente, a balsa estava danificada e a gasolina sem o carburador, mas que a minha vanguarda já marchava, àquela hora, entre São Francisco de Assis e Santiago, muitas léguas, portanto, ao norte e além do Ibicuí!… O Presidente felicitou-me pela diligência e, de novo, despediu-se.

E, assim, findou aquele entendimento, feito pelo fio da Viação Férrea!

Não o quis deixar em olvido porque dele, ainda uma vez, bem se depreende quão ingênuo é querer, desconhecendo-se a natureza das necessidades de uma campanha, dirigi-la de gabinete e à distância!

Por entender desse modo é que, eu, durante quase um ano dessa campanha cruenta e inglória, cingia-me em dar, de quando em quando, algumas notícias da marcha e posição da minha coluna no tabuleiro da luta ou, quando muito, sugestões no sentido da boa coordenação e melhor aproveitamento das forças legais.

Sei, por vários condutos, que, durante a campanha, o Dr. Borges de Medeiros, mais de uma ocasião, afirmara entre amigos, que, às vezes, me perdia o rasto e ficava muito tempo sem saber de mim e dos meus comandados.

Assim era, em verdade, porque o nosso afã ardente, o meu e o daquela gente valorosa, consistia, acima de tudo, em restabelecer a ordem e a concórdia entre os patrícios.

Quando outros fatos não bastassem para corroborar essa assertiva, aí estaria o de eu nunca ter feito uma só proclamação ou ordem do dia, tão de usança nas campanhas militares.

É que, torno a repeti-lo, nunca senti glória em combater e vencer os meus patrícios.

Não tinha, portanto, porque me vangloriar de vitórias alcançadas em luta contra irmãos.

Não havendo, até hoje, aprendido a odiar – e espero em Deus jamais o aprenda – outra atitude, que não essa, teria deformado o meu caráter e abastardado os meus sentimentos: nem mesmo diante do cadáver de um irmão caro, tombado como um herói antigo no fragor do combate do Ibirapuitã, perdi o respeito pelos vencidos.

Realizada a travessia do rio pela maior parte da coluna, fi-la também eu, em bote remado pelo velho Adão, arrematante dos serviços de transportes naquele passo do Ibicuí. Já na sua margem direita, e depois de montar a cavalo, tive de apear e, a nado, passar um braço da água que se formara devido às enxurradas.

Para dar tempo à passagem do resto da tropa e da cavalhada, mandei armar a barraca nas proximidades da casa do Tenente-Coronel Álvaro Alves Pereira, comandante de um corpo das forças revolucionárias e, nesse momento, a elas incorporado.

Era casado com uma filha do meu digno amigo João Nunes Nogueira, morador, igualmente, bem ao pé do Cerro da Carpintaria, pouco distando uma da outra as residências.

Escolhi, propositalmente, aquele local para, com a minha presença, evitar os vexames e abusos de que são sempre vítimas os pobres habitantes da campanha. Além de motivos de estima por aquelas pessoas, tinha ainda outros para assim agir.

Atenção: este fato histórico foi narrado de forma sintética/resumida para o site de Passo Novo.

Passo Novo, RS, 05 de junho de 2021.

Por Valdomiro V. Martins, o Compendiador.

Trabalho elaborado por Valdomiro V. Martins, o Compendiador. (parte integrante do Livro “A História de Passo Novo”).

Direitos autorais reservados (Lei Federal n.º 9.610, de 19/02/1998). As lendas e estórias porém são livres.

Permitido a reprodução para fins didáticos e culturais (art. 29, I, Lei Federal n.º 9.610, de 19/02/1998).

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